terça-feira, 31 de março de 2009

HOBSBAWM - "O MERCADO ABSOLUTO É INVIÁVEL"

30 DE MARÇO DE 2009 - 12h36
Hobsbawm: ''Além de injusto, o mercado absoluto é inviável''
Em entrevista para Martin Granovsky,* no jornal argentino Página 12, o historiador britânico Eric Hobsbawm fala da crise atual e de suas possíveis implicações políticas. Para ele, o mundo está entrando em um período de depressão e os grandes riscos, diante da fragilidade da esquerda mundial, são o crescimento da xenofobia e da extrema-direita. Hobsbawm destaca o que está acontecendo na América Latina e elogia o presidente brasileiro. ''É o verdadeiro introdutor da democracia no Brasil''.
Hobsbawm na entrevista ao 'Página 12'
Em junho ele completa 92 anos. Lúcido e ativo, o historiador que escreveu Rebeldes Primitivos, A Era da Revolução e a História do Século 20, entre outros livros, aceitou falar de sua própria vida, da crise de 30, do fascismo e do antifascismo e da crise atual. Segundo ele, uma crise da economia do fundamentalismo de mercado é o que a queda do Muro de Berlim foi para a lógica soviética do socialismo.
Hobsbawm aparece na porta da embaixada da Alemanha, em Londres. São pouco mais de três da tarde na bela Belgrave Square e se enxergam as bandeiras das embaixadas por trás das copas das árvores. De óculos, chapéu na cabeça e um casaco muito pesado, cumprimenta. Tem mãos grandes e ossudas, mas não parecem as mãos de um velho. Nenhuma deformação de artrite as atacou.
Rapidamente uma pequena prova demonstra que as pernas de Hobsbawm também estão em boa forma. Com agilidade desce três degraus que levam do corrimão a calçada. Parece enxergar bem. Tem uma bengala na mão direita. Não se apóia nela, mas talvez a use como segurança, em caso de tropeçar, ou como um sensor de alerta rápido que detecta degraus, poças e, de imediato, o meio-fio da calçada. Hobsbawm é alto e magro. Uns oitenta e bicos. Não pede ajuda. O motorista do Foreign Office lhe abre a porta esquerda do jaguar preto. Entra no carro com facilidade. O carro é grande, por sorte, e cabe, mas a viagem é curta.
- Acabo de me encontrar com um historiador alemão, por isso estou na embaixada, e devo voltar – avisa. Ele chegou de visita a Londres e quis conversar com alguns de nós. Sei que vamos a Canning House. Está bem. Poucas voltas, não?
O carro dá meia volta na Belgrave Square e pára na frente de outro palacete branco de três andares, com uma varanda rodeada de colunas e a porta de madeira pesada. Por algum motivo mágico o motorista de cabelos brancos com uma mecha sobre o rosto, traje azul e sorridente como um ajudante do inspetor Morse de Oxford, já abre a porta a Hobsbawm. Entre essas construções tão parecidas, a elegância do Jaguar o assemelha a uma carruagem recém polida. O motorista sorri quando Hobsbawm desce. O professor lhe devolve a simpatia enquanto sobe com facilidade num hall obscuro. Já entrou em Canning House e à direita vê uma enorme imagem de José de San Martin. À esquerda do corredor, uma grande sala. O chá está servido. Quer dizer, o chá, os pães e uma torta. Outro quadro do mesmo tamanho que o de San Martin. É Simon Bolívar. E também é Bolívar o cavalheiro do busto sobre o aparador.Quanto chá tomaram Bolívar e San Martin antes de saírem de Londres para a América do Sul, em princípios do século 19, para cumprir seus planos de independência?
Hobsbawm pega a primeira taça e quer ser quem faz a primeira pergunta.
- Como está a Argentina? - interroga mas não muito, porque não espera e comenta – No ano passado Cristina esteve para vir a Londres para uma reunião de presidentes progressistas e pediu para me ver. Eu disse sim, mas ela não veio. Não foi sua culpa. Estava no meio do confronto com a Sociedade Rural.
Hobsbawm fala um inglês sem afetação nem os trejeitos de alguns acadêmicos do Reino Unido. Mas acaba de pronunciar “Sociedade Rural” em castellhano.
- O que aconteceu com esse conflito?
Durante a explicação, o professor inclina a cabeça, mais curioso que antes, enquanto com a mão direita seu garfo tenta cortar a torta de maçã. É uma tarefa difícil. Então se desconcentra da torta e fixa o olhar esperando, agora sim, alguma pergunta.
- O mundo está complicado – afirma ainda mantendo a iniciativa. Não quero cair em slogans, mas é indubitável que o Consenso de Washington morreu. A desregulação selvagem já não é somente má: é impossível. Há que se reorganizar o sistema financeiro internacional. Minha esperança é que os líderes do mundo se dêem conta de que não se pode renegociar a situação para voltar atrás, senão que há que se redesenhar tudo em direção ao futuro.
A Argentina experimentou várias crises, a última forte em 2001. Em 2005 o presidente Néstor Kirchner, de acordo com o governo brasileiro, que também o fez, pagou ao FMI e desvinculou a Argentina do organismo para que o país não continuasse submetido a suas condicionalidades.
- É que a esta altura se necessita de um FMI absolutamente distinto, com outros princípios que não dependam apenas dos países mais desenvolvidos e em que uma ou duas pessoas tomam as decisões. É muito importante o que o Brasil e a Argentina estão propondo, para mudar o sistema atual. Como estão as relações de vocês?
- Muito bem
- Isso é muito importante. Mantenham-nas assim. As boas relações entre governos como os de vocês são muito importantes em meio a uma crise que também implica riscos políticos. Para os padrões estadunidenses, o país está girando à esquerda e não à extrema direita. Isso também é bom. A Grande Depressão levou politicamente o mundo para a extrema direita em quase todo o planeta, com exceção dos países escandinavos e dos Estados Unidos de Roosevelt. Inclusive o Reino Unido chegou a ter membros do Parlamento que eram de extrema direita [e começa a entrevista propriamente].
- E que alternativa aparece?
- Não sei. Sabe qual é o drama? O giro à direita teve onde se apoiar: nos conservadores. O giro à esquerda também teve em quem descansar: nos trabalhistas.
- Os trabalhistas governam o Reino Unido.
- Sim, mas eu gostaria de considerar um quadro mais geral. Já não existe esquerda tal como era.
- Isso lhe é estranho?
- Faço apenas o registro.
- A quê se refere quando diz “a esquerda tal como era”?
- Às distintas variantes da esquerda clássica. Aos comunistas, naturalmente. E aos socialdemocratas. Mas, sabe o que acontece? Todas as variantes da esquerda precisam do Estado. E durante décadas de giro à direita conservadora, o controle do Estado se tornou impossível.
- Por que?
- Muito simples. Como você controla o estado em condições de globalização? Convém recordar que, em princípios dos anos 80 não só triunfaram Ronald Reagan e Margareth Thatcher. Na França, François Miterrand não obteve uma vitória.- Havia vencido para a presidência dem 1974 e repetiu a vitória em 1981.- Sim. Mas quando tentou uma unidade das esquerdas para nacionalizar um setor maior da economia, não teve poder suficiente para fazê-lo. Fracassou completamente. A esquerda e os partidos socialdemocratas se retiraram de cena, derrotados, convencidos de que nada se podia fazer. E, então, não só na França como em todo mundo ficou claro que o único modelo que se podia impor com poder real era o capitalismo absolutamente livre.
- Livre, sim. Por que diz “absolutamente”?
- Porque com liberdade absoluta para o mercado, quem atende aos pobres? Essa política, ou a política da não-política, é a que se desenvolveu com Margareth Thatcher e Ronald Reagan. E funcionou – dentro de sua lógica, claro, que não compartilho – até a crise que começou em 2008. Frente à situação anterior a esquerda não tinha alternativa. E frente a esta? Prestemos atenção, por exemplo, à esquerda mais clássica da Europa. É muito débil na Europa. Ou está fragmentada. Ou desapareceu. A Refundação Comunista na Itália é débil e os outros ramos do ex Partido Comunista Italiano estão muito mal. A Esquerda Unida na Espanha também está descendo ladeira abaixo. Algo permaneceu na Alemanha. Algo na França, como Partido Comunista. Nem essas forças, nem menos ainda a extrema esquerda, como os trotskistas, e nem sequer uma socialdemocracia como a que descrevi antes alcançam uma resposta a esta crise a seus perigos, contudo. A mesma debilidade da esquerda aumenta os riscos.
- Que riscos?
- Em períodos de grande descontentamento como o que começamos a viver, o grande perigo é a xenofobia, que alimentará e será por sua vez alimentada pela extrema direita. E quem essa extrema direita buscará? Buscará atrair os “estúpidos” cidadãos que se preocupam com seu trabalho e têm medo de perdê-lo. E digo estúpidos ironicamente, quero deixar claro. Porque aí reside outro fracasso evidente do fundamentalismo de mercado. Deu liberdade para todos, e a verdadeira liberdade de trabalho? A de mudá-lo e melhorar em todos os aspectos? Essa liberdade não foi respeitada porque, para o fundamentalismo de mercado isso tinha se tornado intolerável. Também teriam sido politicamente intoleráveis a liberdade absoluta e a desregulação absoluta em matéria laboral, ao menos na Europa. Eu temo uma era de depressão.
- Você ainda tem dúvidas de que entraremos em depressão?
- Se você quiser posso falar tecnicamente, como os economistas, e quantificar trimestres. Mas isso não é necessário. Que outra palavra pode se usar para denominar um tempo em que muito velozmente milhões de pessoas perdem seu emprego? De qualquer maneira, até o momento no vejo um cenário de uma extrema direita ganhando maioria em eleições, como ocorreu em 1933, quando a Alemanha elegeu Adolf Hitler. É paradoxal, mas com um mundo muito globalizado um fator impedirá a imigração, que por sua vez aparece como a desculpa para a xenofobia e para o giro à extrema direita. E esse fator é que as pessoas emigrarão menos – falo em termos de emigração em massa – ao verem que nos países desenvolvidos a crise é tão grave. Voltando à xenofobia, o problema é que, ainda que a extrema direita não ganhe, poderia ser muito importante na fixação da agenda pública de temas e terminaria por imprimir uma face muito feia na política.
- Deixemos de lado a economia, por um momento. Pensando em política, o que diminuiria o risco da xenofobia?
- Me parece bem, vamos à prática. O perigo diminuiria com governos que gozem de confiança política suficiente por parte do povo em virtude de sua capacidade de restaurar o bem-estar econômico. As pessoas devem ver os políticos como gente capaz de garantir a democracia, os direitos individuais e ao mesmo tempo coordenar planos eficazes para se sair da crise. Agora que falamos deste tema, sabe que vejo os países da América Latina surpreendentemente imunes à xenofobia?
- Por que?
- Eu lhe pergunto se é assim. É assim?
- É possível. Não diria que são imunes, se pensamos, por exemplo, no tratamento racista de um setor da Bolívia frente a Evo Morales, mas ao menos nos últimos 25 anos de democracia, para tomar a idade da democracia argentina, a xenofobia e o racismo nunca foram massivos nem nutriram partidos de extrema direita, que são muito pequenos. Nem sequer com a crise de 2001, que culminou o processo de destruição de milhões de empregos, apesar de que a imigração boliviana já era muito importante em número. Agora, não falamos dos cantos das torcidas de futebol, não é?
- Não, eu penso em termos massivos.
- Então as coisas parecem ser como você pensa, professor. E, como em outros lugares do mundo, o pensamento da extrema direita aparece, por exemplo, com a crispação sobre a segurança e a insegurança das ruas.
- Sim, a América Latina é interessante. Tenho essa intuição. Pense num país maior, o Brasil. Lula manteve algumas idéias de estabilidade econômica de Fernando Henrique Cardoso, mas ampliou enormemente os serviços sociais e a distribuição. Alguns dizem que não é suficiente...
- E você, o que diz?
- Que não é suficiente. Mas que Lula fez, fez. E é muito significativo. Lula é o verdadeiro introdutor da democracia no Brasil. E ninguém o havia feito nunca na história desse país. Por isso hoje tem 70% de popularidade, apesar dos problemas prévios às últimas eleições. Porque no Brasil há muitos pobres e ninguém jamais fez tantas coisas concretas por eles, desenvolvendo ao mesmo tempo a indústria e a exportação de produtos manufaturados. A desigualdade ainda assim segue sendo horrorosa. Mas ainda faltam muitos anos para mudar as cosias. Muitos.
- E você pensa que serão de anos de depressão mundial
- Sim. Lamento dizê-lo, mas apostaria que haverá depressão e que durará alguns anos. Estamos entrando em depressão. Sabem como se pode dar conta disso? Falando com gente de negócios. Bom, eles estão mais deprimidos que os economistas e os políticos. E, por sua vez, esta depressão é uma grande mudança para a economia capitalista global.
- Por que está tão seguro desse diagnóstico?
- Porque não há volta atrás para o mercado absoluto que regeu os últimos 40 anos, desde a década de 70. Já não é mais uma questão de ciclos. O sistema deve ser reestruturado.
- Posso lhe perguntar de novo por que está tão seguro?
- Porque esse modelo não é apenas injusto: agora é impossível. As noções básicas segundo as quais as políticas públicas deviam ser abandonadas, agora estão sendo deixadas de lado. Pense no que fazem e às vezes dizem, dirigentes importantes de países desenvolvidos. Estão querendo reestruturar as economias para sair da crise. Não estou elogiando. Estou descrevendo um fenômeno. E esse fenômeno tem um elemento central: ninguém mais se anima a pensar que o Estado pode não ser necessário ao desenvolvimento econômico. Ninguém mais diz que bastará deixar que o mercado flua, com sua liberdade total. Não vê que o sistema financeiro internacional já nem funciona mais? Num sentido, essa crise é pior do que a de 1929-1933, porque é absolutamente global. Nem os bancos funcionam.
- Onde você vivia nesse momento, no começo dos anos 30?
- Nada menos que em Viena e Berlim. Era um menino. Que momento horroroso. Falemos de coisas melhores, como Franklin Delano Roosevelt.
- Numa entrevista para a BBC no começo da crise você o resgatou.
- Sim, e resgato os motivos políticos de Roosevelt. Na política ele aplicou o princípio do “Nunca mais”. Com tantos pobres, com tantos famintos nos Estados Unidos, nunca mais o mercado como fator exclusivo de obtenção de recursos. Por isso decidiu realizar sua política do pleno emprego. E desse modo não somente atenuou os efeitos sociais da crise como seus eventuais efeitos políticos de fascistização com base no medo massivo. O sistema de pleno emprego não modificou a raiz da sociedade, mas funcionou durante décadas. Funcionou razoavelmente bem nos Estados Unidos, funcionou na França, produziu a inclusão social de muita gente, baseou-se no bem-estar combinado com uma economia mista que teve resultados muito razoáveis no mundo do pós-Segunda Guerra. Alguns estados foram mais sistemáticos, como a França, que implantou o capitalismo dirigido, mas em geral as economias eram mistas e o Estado estava presente de um modo ou de outro. Poderemos fazê-lo de novo? Não sei. O que sei é que a solução não estará só na tecnologia e no desenvolvimento econômico. Roosevelt levou em conta o custo humano da situação de crise.
- Quer dizer que para você as sociedades não se suicidam.
(Pensa) – Não deliberadamente. Sim, podem ir cometendo erros que as levam a catástrofes terríveis. Ou ao desastre. Com que razoabilidade, durante esses anos, se podia acreditar que o crescimento com tamanho nível de uma bolha seria ilimitado? Cedo ou tarde isso terminaria e algo deveria ser feito.
- De maneira que não haverá catástrofe.
- Não me interessam as previsões. Observe, se acontece, acontece. Mas se há algo que se possa fazer, façamos-no. Não se pode perdoar alguém por não ter feito nada. Pelo menos uma tentativa. O desastre sobrevirá se permanecermos quietos. A sociedade não pode basear-se numa concepção automática dos processos políticos. Minha geração não ficou quieta nos anos 30 nem nos 40. Na Inglaterra eu cresci, participei ativamente da política, fui acadêmico estudando em Cambridge. E todos éramos muito politizados. A Guerra Civil espanhola nos tocou muito. Por isso fomos firmemente antifascistas.
- Tocou a esquerda de todo o mundo. Também na América Latina.
- Claro, foi um tema muito forte para todos. E nós, em Cambridge, víamos que os governos não faziam nada para defender a República. Por isso reagimos contra as velhas gerações e os governos que as representavam. Anos depois entendi a lógica de por quê o governo do Reino Unido, onde nós estávamos, não fez nada contra Francisco Franco. Já tinha a lucidez de se saber um império em decadência e tinha consciência de sua debilidade. A Espanha funcionou como uma distração. E os governos não deviam tê-la tomado assim. Equivocaram-se. O levante contra a República foi um dos feitos mais importantes do século 20. Logo depois, na Segunda Guerra...
- Pouco depois, não? Porque o fim da Guerra Civil Espanhola e a invasão alemã da Tchecoslováquia ocorreu no mesmo ano.
- É verdade. Dizia-lhe que logo depois o liberalismo e o comunismo tiveram uma causa comum. Se deram conta de que, assim não fosse, eram débeis frente ao nazismo. E no caso da América Latina o modelo de Franco influenciou mais que o de Benito Mussolini, com suas idéias conspiratórias da sinarquia, por exemplo. Não tome isso como uma desculpa para Mussolini, por favor. O fascismo europeu em geral é uma ideologia inaceitável, oposta a valores universais.
- Você fala da América Latina...
- Mas não me pergunte da Argentina. Não sei o suficiente de seu país. Todos me perguntam do peronismo. Para mim está claro que não pode ser tomado como um movimento de extrema direita. Foi um movimento popular que organizou os trabalhadores e isso talvez explique sua permanência no tempo. Nem os socialistas nem os comunistas puderam estabelecer uma base forte no movimento sindical. Sei das crises que a Argentina sofreu e sei algo de sua história, do peso da classe média, de sua sociedade avançada culturalmente dentro da América Latina, fenômeno que creio ainda se mantém. Sei da idade de ouro dos anos 20 e sei dos exemplos obscenos de desigualdade comuns a toda a América Latina.
- Você sempre se definiu com um homem de esquerda. Também segue tendo confiança nela?
- Sigo na esquerda, sem dúvida com mais interesse em Marx do que em Lênin. Porque sejamos sinceros, o socialismo soviético fracassou. Foi uma forma extrema de aplicar a lógica do socialismo, assimo como o fundamentalismo de mercado foi uma forma extrema de aplicação da lógica do liberalismo econômico. E também fracassou. A crise global que começou no ano passado é, para a economia de mercado, equivalente ao que foi a queda do Muro de Berlim em 1989. Por isso Marx segue me interessando. Como o capitalismo segue existindo, a análise marxista ainda é uma boa ferramenta para analisá-lo. Ao mesmo tempo, está claro que não só não é possível como não é desejável uma economia socialista sem mercado nem uma economia em geral sem Estado.
- Por que não?
- Se se mira a história e o presente, não há dúvida alguma de que os problemas principais, sobretudo no meio de uma crise profunda, devem e podem ser solucionados pela ação política. O mercado não tem condições de fazê-lo.
* Martin Granovsky é analista internacional e presidente da agência de notícias Télam
Tomado da Carta Maior: http://www.pagina12.com.ar

quinta-feira, 26 de março de 2009

Traição ao socialismo foi causa de extinção da URSS

A afirmação foi feita por dois militantes comunistas norte-americanos ao jornal Avante!, do Partido Comunista Português, em entrevista publicada nesta quinta-feira (25), sobre o exaustivo estudo que os dois fizeram em um livro dedicado às causas da derrota do socialismo e à desagregação da URSS, malogro que significou uma perda incalculável para os trabalhadores e povos oprimidos de todo o mundo.
Leia a seguir a íntegra da entrevista.
Roger Keeran e Thomas Kenny são militantes comunistas norte-americanos. Roger é historiador com obra publicada e professor universitário. Thomas é economista. Amigos de longa data, lançaram-se juntos no estudo e aprofundamento das causas que levaram à derrota do socialismo e à desagregação da URSS, malogro que significou uma perda incalculável para os trabalhadores e povos oprimidos de todo o mundo. As reveladoras conclusões a que chegaram estão expostas no seu livro Socialismo Traído, recentemente publicado pelas Edições Avante!
Desde quando e porquê se interessaram pela investigação das causas da derrota do socialismo e do colapso da União Soviética?
Thomas Kenny – Tanto eu como o Roger considerámos os acontecimentos entre 1989 e 1991, o colapso do socialismo europeu, como um desastre titânico. Após 1991 pensámos que a história do socialismo suscitaria o interesse de muitos investigadores e que haveria uma avalanche de publicações sobre o assunto. Mas enganámo-nos, não houve nada, apenas silêncio. Apesar de este não ser o campo de trabalho de nenhum de nós, decidimos especializar-nos nesta área para fazer a investigação, lendo toda a literatura que encontrámos disponível. Trabalhámos durante quatro anos, entre 1991 e 2004, ano em que publicámos o livro nos Estados Unidos com as conclusões do estudo.
Mas o que nos levou realmente a tentar determinar as causas do colapso foi o fato de a teoria em que acreditamos não "autorizar" tal situação. O colapso do socialismo estava em contradição com tudo aquilo em que acreditávamos. Nunca pensámos que fosse possível destruir o socialismo, antes pelo contrário acreditávamos firmemente que o socialismo iria desenvolver-se e crescer continuamente.
O materialismo histórico estaria afinal errado?…
TK – Não. Estávamos certos de que, enquanto método, o materialismo histórico permanecia válido, mas interrogámo-nos por que é que nada se disse sobre isto? Precisámos de muitas leituras e mais de um ano e meio até começarmos a identificar algumas peças deste quebra-cabeças e nos darmos conta do peso da chamada "segunda economia" na União Soviética, fator que se revelou decisivo nas nossas conclusões.
Roger Keeran – Nós acreditávamos que o socialismo do século 21 precisava saber o que é que tinha acontecido ao socialismo do século 20. Depois da Revolução de Outubro, o acontecimento mais importante do século 20 foi, talvez, a destruição da União Soviética e do socialismo na Europa.
Existe a idéia de que a perestróika constituiu uma resposta a uma crise econômica, social, política, cultural, ideológica, moral e partidária, consequência de graves deformações ao ideal socialista, de distorções, erros e atrasos acumulados ao longo de muitos anos. Afirma-se que o "modelo" soviético de socialismo havia esgotado as suas potencialidades de desenvolvimento, tornando-se necessário proceder a reformas radicais. Querem comentar?
RK – É natural que perante um passo atrás tão tremendo as pessoas tendam a reagir com exagero na avaliação das suas causas. Não havia crise nenhuma na União Soviética, havia problemas, mas não uma crise…
Mas para a maioria das pessoas é uma evidência de que só uma profunda crise poderia provocar tal catástrofe...
RK – Acho que podemos sintetizar o nosso ponto de vista do seguinte modo: não foi a doença que matou o socialismo mas sim a cura. Ao contrário do que muitos pensam, não havia sinais de uma crise: não havia desemprego, inflação, manifestações, etc.
Mas isto não significa que não houvesse problemas. É claro que os havia, principalmente no plano econômico, muito deles agravados no período de Bréjnev, cuja liderança se caracterizou por uma passividade e falta de vontade para enfrentar os problemas. Neste sentido podemos dizer que houve uma espécie de "estagnação", apesar de não gostarmos desta palavra, já que significa ausência de crescimento, o que não corresponde à verdade.
Os problemas econômicos agravaram-se a partir de que altura?
TK – A taxa de crescimento da economia começou a abrandar a partir da época de Khruchov, passando de 10 a 15 por cento ao ano para cinco, quatro e três por cento. Houve uma clara desaceleração, mas continuou a observar-se um crescimento respeitável segundo os padrões capitalistas, o que permitiu elevar continuamente o nível de vida na União Soviética. Em 1985 o nível de vida tinha atingido o seu ponto máximo.
No plano das nacionalidades, não se observavam conflitos ou contradições nacionais relevantes entre os povos da União Soviética. Havia problemas, dificuldades, mas não uma crise.
No plano internacional, a URSS estava sob pressão do imperialismo norte-americano. A administração Reagan aumentou a pressão militar, econômica e diplomática. Também identificámos problemas no interior do partido que exigiam reformas. Mas a questão principal era outra.

"Só com Gorbatchov a direita triunfou"
Se, como afirmam, o socialismo não estava em crise, qual a origem das reformas destruidoras realizadas no final dos anos 80 na URSS?
TK - Ao longo da história da União Soviética digladiaram-se sempre duas tendências na política soviética: uma ala de direita, que defendia a incorporação de formas e idéias capitalistas, e uma ala de esquerda que apostava na luta de classes, num partido comunista forte e na defesa intransigente das posições da classe operária.
De resto, encontramos estas duas correntes mesmo antes da revolução de Outubro. Os mencheviques, por um lado, e os bolcheviques por outro. Mais tarde esta luta é polarizada por Bukhárin e Stálin, Khruchov e Mólotov, Bréjnev e Andrópov, Gorbatchov e Ligatchov. Toda a história da URSS pode ser vista à luz da luta entre estas duas correntes. No entanto, só com Gorbatchov a ala direita obteve um triunfo completo.
RK – Bréjnev, com a sua política de estabilidade de quadros e o seu receio de fazer ondas, deixou uma direção extremamente envelhecida e permitiu que se agravassem vários problemas na economia e na sociedade.
A carência de alguns produtos, sobretudo os de alta qualidade, o desenvolvimento da "segunda economia", a corrupção de dirigentes do partido, tudo isto desagradava às pessoas. Quando Gorbatchov prometeu resolver estes problemas, quase toda a gente concordou. Parecia que finalmente tinha aparecido alguém com vontade de mudar as coisas para melhor.
Todavia, alguns apontam como causas do colapso a degeneração do partido comunista, o fato de o trabalho coletivo ter sido substituído a dada altura por um pequeno círculo de dirigentes e mesmo por um só dirigente individualmente; a democracia partidária ter sido estrangulada por um sistema burocrático centralizado; a indesejável fusão e confusão entre as estruturas do partido e do Estado; o afastamento do partido das massas; o fracasso da democracia socialista que era apresentada como um tipo superior de democracia. De acordo com esta tese, o povo soviético foi despojado do poder político e isso foi fatal para o socialismo. Concordam?
TK - A visão de que a União Soviética sofria de um déficit democrático e de um excesso de centralização está muito espalhada entre socialistas reformistas, sociais-democratas, historiadores burgueses e mesmo entre alguns comunistas, mas, na nossa opinião, é uma visão errada e exagerada dos problemas da democracia soviética.
Apesar de alguns problemas, a democracia soviética tinha uma grande vitalidade. Cerca de 35 milhões de trabalhadores participavam diretamente no trabalho dos sovietes, que eram instituições de poder que tomavam decisões efectivas, 163 milhões de trabalhadores estavam sindicalizados, o partido tinha 18 milhões de militantes, a democracia tinha outras instituições como as seções de cartas do leitor em todos os jornais, as organizações de mulheres e de jovens.
É verdade que todas estas instituições tinham insuficiências, poderiam funcionar melhor e de forma mais efetiva, mas não é verdade que fossem instituições de fachada.
As pessoas que atacaram o nosso livro acreditam, na sua maioria, que a falta de democracia e o excesso de centralização foram as causas do colapso soviético. Curiosamente, este sempre foi o principal argumento da burguesia para difamar o regime soviético muito antes da chegada de Gorbatchov. Na nossa opinião é incorreto acusar a democracia soviética de ter levado ao colapso.
RK – Muitas dessas críticas radicam na concepção burguesa de democracia. Na verdade a União Soviética sempre foi acusada de não ter uma democracia burguesa, de não ter partidos concorrentes. Todavia, as formas de democracia socialista, sem serem perfeitas, eram sob muitos aspectos muito mais ricas do que a democracia burguesa.
Penso que o recente conflito na Geórgia nos fornece um exemplo a este respeito. Na antiga União Soviética, a Ossétia do Sul era um território autónomo onde as minorias étnicas tinham as suas escolas, língua, cultura.
Após a desagregação da URSS, a "democracia" georgiana aboliu o estatuto de autonomia dos ossetas, o que agravou as tensões e desembocou numa guerra na região.
TK – Houve razões históricas que determinaram que na URSS apenas houvesse um partido. Logo a seguir à revolução os restantes partidos combateram o poder soviético, os socialistas revolucionários abandonaram o governo e tudo isso levou a que apenas ficassem os bolcheviques.
A maioria dos países socialistas europeus tinha vários partidos, embora o papel dirigente do partido da classe operária fosse salvaguardado. A existência de um só partido acentuou a idéia de fusão entre o partido e o Estado, mas não vemos que isso possa ter constituído uma causa do colapso.
Mas as insuficiências da democracia soviética não terão impedido o povo de defender as conquistas revolucionárias, a URSS e o socialismo?
TK – Esse é o principal argumento dos que afirmam que havia um déficit democrático. Porque é que o povo não defendeu o socialismo? Perguntam dando como resposta a falta de democracia e o excesso de centralização.
Em primeiro lugar, não é verdade que não tenha havido resistência. Houve, basta lembrar que, no referendo de 1991, a maioria esmagadora dos soviéticos (75 por cento) votou a favor da manutenção da URSS.
Por outro lado, para percebermos porque é que essa resistência não foi suficientemente forte para derrotar a contra-revolução, temos de ter em conta o seguinte: Gorbatchov e Iákovlev, ao mesmo tempo que prometiam o aperfeiçoamento do socialismo, com mais liberdade e democracia, destruíram num curto espaço de tempo as instituições por meio das quais a base do partido e o povo podiam expressar a sua vontade.
A organização do partido foi desmantelada, os jornais e todos os meios de informação foram entregues a anticomunistas. De repente desapareceram os mecanismos e formas habituais de expressão democrática popular.

Regressando à economia, ficou-nos da perestróika a idéia de que o excesso de centralização, de planificação e de burocracia foram os causadores dos atrasos no desenvolvimento econômico. Alguns acrescentam que houve uma estatização exagerada da economia, que as diferentes formas de propriedade deveriam ter sido mantidas e que o papel do mercado foi claramente subestimado durante o processo de construção do socialismo. Qual é o vosso ponto de vista?
RK – Penso que temos de começar por fazer a seguinte observação que ninguém contesta: a propriedade social dos meios de produção na União Soviética permitiu os mais rápidos ritmos de crescimento industrial jamais registrados em qualquer época da história. Isso ocorreu nos anos 30, mas também a seguir à guerra até meados dos anos 50. Em quatro ou cinco anos, a União Soviética conseguiu recuperar da devastação provocada pela Segunda Guerra Mundial, que deixou em ruínas um terço das cidades e um terço das indústrias.
Por tudo isto, nunca pensámos que a propriedade estatal, a centralização e a planificação pudessem ter causado o colapso. Mas havia algumas questões que precisavam de ser explicadas.
Porque é que o crescimento começou a declinar nos anos 60 e 70. A economia continuava a crescer, mas qual era a razão da desaceleração? Os críticos da planificação centralizada viram aqui a demonstração das suas teses…
Talvez as enormes proporções atingidas pela economia colocassem verdadeiros problemas e dificultassem essa planificação?
RK – Sim, é certo que a expansão da economia tornou a planificação numa tarefa mais complexa. Todavia, a conclusão a que chegámos aponta em sentido contrário, ou seja, foi a erosão da planificação e o florescimento da "segunda economia" que colocaram entraves ao crescimento econômico na URSS.
Não foi portanto a subestimação do papel do mercado, mas antes as medidas tomadas para o seu alargamento que desviaram recursos da economia socialista?
TK - Todas as sociedades socialistas têm mercados. A própria União Soviética sempre teve um mercado para o consumo privado. No entanto, as reformas econômicas de Khruchov não só descentralizaram a planificação como introduziram alguns mecanismos de mercado na economia e formas de concorrência entre as empresas.
As reformas de Kossiguin [primeiro-ministro da URSS entre 1964 e 1980] traduziram-se em cada vez maiores concessões ao modo de pensar capitalista.
Dos cinco institutos mais importantes e influentes de economia política soviéticos, três estavam nas mãos de economistas pró-capitalistas do tipo de Aganbeguian, por exemplo.
Os principais setores da inteliguentsia, incluindo os economistas, exerciam importantes pressões sobre o governo. Este foi um processo que se desenvolveu ao longo de 20 anos, não aconteceu tudo de uma vez.
Para alguns a perestróika tinha boas intenções mas falhou. No vosso livro, afirmam que esta foi a grande oportunidade para as forças anti-socialistas avançarem. Qual foi a responsabilidade e que intenções reais teve Gorbatchov em todo este processo?
TK – Apesar das suas posições oportunistas, não pensamos que Gorbatchov tenha agido conscientemente logo de início para trair o socialismo e restaurar o capitalismo.
Ao contrário de Andrópov, que era profundo e um marxista-leninista genuíno, Gorbatchov era um brilhante ator, mas uma pessoa superficial, sem grande preparação teórica.
Quando se deslocou politicamente para a direita sob a influência de Iákovlev*, descobriu que o imperialismo o aprovava, que os elementos corrompidos do partido concordavam com ele, especialmente aqueles ligados à segunda economia que defendiam o setor privado, e aos poucos foi acelerando as reformas neste sentido.
A dado momento Gorbatchov tomou a decisão consciente de que não era mais um comunista, mas um social-democrata, não acreditava mais na planificação, na propriedade social dos meios de produção, no papel da classe operária, na democracia socialista, queria que a União Soviética se transformasse numa Suécia ou algo parecido.
O oportunismo, o abandono da luta foi um processo gradual que se tornou evidente em 1986. Alguns dirigentes do partido ofereceram determinada resistência, como foi o caso de Ligatchov*, mas mesmo este tinha fraquezas, embora fosse de longe melhor homem do que Gorbatchov. Ligachov foi apanhado de surpresa.

Ele próprio afirmou que havia duas formas de corrupção, uma que há muito todos sabiam que existia, e à qual queriam pôr fim quando assumiram o poder em 1985; e uma outra que surgiu no espaço de um ano e meio como uma forte vaga de pressão, vinda da "segunda economia" e das organizações mafiosas florescentes.
Como puderam esses setores emergir com tal força na sociedade socialista?
TK – A "segunda economia" alcançou uma expressão importante em dois períodos da história da URSS: o primeiro foi durante a Nova Política Econômica (NEP) dos anos 20 que permitiu o desenvolvimento do capitalismo, sob controlo estatal dentro de determinados limites.
Esta foi uma opção consciente do Estado socialista tomada provisoriamente para fazer face à situação de emergência causada pela guerra civil. Em 1928-29 a NEP foi superada de forma decidida.
No entanto, dirigentes do partido como Bukhárin defenderam a manutenção da NEP apresentando-a como a via mais adequada para alcançar o socialismo. Esta corrente foi derrotada pela maioria do partido liderada por Stálin, que justamente lembrou que a NEP fora definida por Lênin como um recuo necessário, porém temporário. E apostaram na planificação centralizada e na propriedade social dos meios de produção.
Mas este período dos anos 20 ficou marcado não só pelo florescimento do capitalismo e dos setores marginais e criminosos, mas também pelo alastramento de uma ideologia de direita, anti-socialista. Ou seja, podemos ver claramente uma correspondência entre a base material e a ideologia.
O segundo período foi mais prolongado e gradual. Teve início em meados dos anos 50, após a morte de Stálin. Khruchov foi a primeira peça deste quebra-cabeças. Em muitos aspectos, não todos, teve desvios de direita e quando estes foram demasiados houve uma correção. Veio Bréjnev, mas este detestava mudanças, queria estabilidade, e apesar das disputas entre as alas esquerda e direita os problemas continuaram a acumular-se.
"O socialismo é uma construção consciente"
Foi então o acumular de problemas na época de Bréjnev que condicionou as reformas dos anos 80?
TK – Nos anos 80, os problemas eram evidentes para todos, mas a questão-chave que se colocava era qual das duas tendências tradicionais no partido os iria resolver: a tendência de direita ou a tendência de esquerda?…
Infelizmente já conhecemos a resposta…
RK – Mas Bréjnev não teve apenas aspectos negativos. No plano internacional obteve a paridade militar com os Estados Unidos e ajudou os movimentos revolucionários em várias regiões do mundo.
Este esforço no plano militar e no plano da solidariedade internacionalista exigiu importantes recursos que não puderam ser utilizados para suprir necessidades domésticas.
Talvez também por esta razão que, durante este período, se tenha fechado os olhos ao setor privado ilegal que se desenvolvia nas bordas da economia socialista. Esta espécie de "pacto" com a "segunda economia" permitiu o surgimento de uma camada que ficou conhecida como "os milionários de Bréjnev", que eram pessoas que fizeram fortunas através de redes de corrupção toleradas pelo poder.

TK – Bem, trata-se de um setor ilegal, por isso não há números oficiais, o que torna o seu estudo difícil…
RK – Mas é verdade que se trata de um fenômeno ignorado e não reconhecido pela literatura marxista. A "segunda economia" foi sempre vista como um resquício do capitalismo que desapareceria à medida do avanço do socialismo.
Contudo, há alguns estudos que nos mostram que o seu peso estava longe de ser negligenciável. Por exemplo, é interessante comparar o período de Bréjnev com os primeiros meses da direção de Andrópov em termos de processos criminais instruídos por atividades econômicas ilícitas.
Verificamos que nos anos de Bréjnev não houve praticamente condenações pela prática deste tipo de crime, mesmo quando os casos chegaram a ser julgados em tribunal. Com Andrópov esta situação alterou-se radicalmente. Muitas pessoas foram condenadas nesse período.
No vosso livro, não dedicam muito espaço à análise do chamado "relatório secreto" apresentado ao 20.º congresso do PCUS por Khruchov sobre o "culto à personalidade", mas referem a necessidade de reavaliar o período comumente designado por "stalinismo", notando que enquanto tal não for feito, os comunistas continuarão prisioneiros do passado. Querem explicar?
RK – Quando começámos a escrever o livro essa questão colocou-se e tivemos de tomar uma decisão. Decidimos que não iríamos entrar no tema quente de Stálin. Há muitos preconceitos enraizados e, sobretudo, há muitas coisas que não conhecemos suficientemente para podermos desmontar idéias feitas e diariamente repetidas sobre Stálin.
A única coisa que fizemos, ou pelo menos tentámos, foi abrir a porta a este assunto. Nós não temos todas as respostas sobre Stálin e a sua época, e seria um erro pensar que temos. Há muitos aspectos históricos e políticos que precisamos de absorver e compreender.
Contudo, praticamente todas as conquistas do socialismo que enumeram na introdução do livro foram alcançadas em particular durante os anos 30, sob a direção de Stálin…
TK – É um fato, mas tivemos de fazer uma opção entre tratar toda a questão ou apenas o que consideramos ser a questão-chave. Por acaso, a maioria dos ataques ao nosso livro por parte de marxistas ou pseudo-marxistas, sociais-democratas ou comunistas revisionistas centraram-se precisamente na questão de Stálin.

Não contestaram nada do que dissemos sobre Gorbatchov nem sobre a "segunda economia", apenas nos censuraram por sermos demasiado brandos com Stálin e por não termos reconhecido que Stálin era um monstro, um louco, um carniceiro. Esta questão no Partido Comunista dos Estados Unidos é particularmente sensível.
Mas se a tese do vosso livro está correta, então as políticas de Stálin terão sido as mais corretas e as únicas que podiam garantir a construção do socialismo e defender as conquistas revolucionárias.
RK – O ódio a Stálin é tão cego e intenso que alguns críticos do nosso livro dizem que estamos errados e insistem que Stálin foi a causa do colapso da URSS.
Vem a propósito uma reflexão vossa sobre a importância do fator subjetivo no socialismo. Segundo afirmam, o papel dos dirigentes é mais decisivo no socialismo do que no capitalismo. Porquê?
TK – O capitalismo cresce enquanto que o socialismo é construído. No livro utilizamos uma metáfora em que comparamos o capitalismo a uma jangada a descer um rio. As possibilidades de dirigir a jangada são reduzidas, ela é arrastada pela força da corrente e apenas se podem fazer algumas pequenas correções na trajetória.
Nesta metáfora, o socialismo é um avião, o qual apesar de ser um meio de transporte incomparavelmente superior exige ser pilotado por uma equipa bem preparada científica e tecnologicamente, capaz de compreender e aplicar conscientemente as leis da ciência.
Ou seja, apesar de o avião ser um sistema superior é vulnerável num sentido em que a jangada não o é. Isto não significa obviamente que devamos abandonar o avião e voltar à jangada, assim como não podemos voltar ao tempo das cavernas, apesar de as nossas casas poderem ruir.

*Alekssandr Iákovlev — responsável a partir de 1985 pelo departamento de propaganda do PCUS, torna-se membro do CC do PCUS em 1986, responsável pelas questões da ideologia, informação e cultura.
Sobe ao politburo em junho de 1986 e é sob proposta sua que são nomeados os diretores dos principais jornais e revistas do país que passam a defender abertamente posições antisocialistas (os jornais Moskovskie Novosti, Sovietskskaia Kultura, Izvestia; as revistas Ogoniok, Znamia, Novi Mir, entre outros). Faz publicar uma série de romances de escritores dissidentes e anti-soviéticos, bem como cerca de 30 filmes antes proibidos. Em agosto de 1991 anuncia a decisão de abandonar o PCUS.
*Iegor Ligatchov – membro do politburo entre 1985 e 1991, foi um dos impulsionadores da campanha anti-álcool (1985-87) e, mais tarde, assumiu-se como um opositor às reformas de Gorbatchov.
Jornal Avante!

FHC está com saudades da ''ditabranda''

Torcendo para que a crise mundial abale a popularidade do presidente Lula, o agourento FHC resolveu soltar a sua língua ferina. Em apenas dois dias, o ''príncipe da Sorbonne'' falou duas besteiras retumbantes. Talvez influenciado pela Folha de S.Paulo, que recentemente cunhou o odioso termo ''ditabranda'' para se referir ao sombrio período da ditadura no país, afirmou: ''Aí que saudades do governo militar, quando eu podia falar''. Foi uma resposta intempestiva a uma justa alfinetada de Lula, que recentemente afirmou que ''tem ex-presidente que fala demais''.

Por Altamiro Borges
Talvez FHC esteja com saudades da fase em que viveu no exílio, quem sabe ''brando'', durante o regime militar. Nos anos de chumbo da ditadura não se ''podia falar'' à vontade no país, marcado por prisões arbitrárias, torturas, mortes, cassação de parlamentares, intervenção nos sindicatos e censura à imprensa alternativa.
Ou talvez FHC esteja com saudades do seu reinado de oito anos no Palácio do Planalto, quando acionou as tropas do Exército para reprimir a greve da Petrobras e desqualificou as criticas ao seu governo, taxando-as de ''blábláblá''. Bem diferente de Lula, sua gestão foi autoritária e fez de tudo para ''quebrar a espinha dorsal'' dos movimentos sociais.
Corrupção e caradura dos tucanos
A outra pisada na bola de FHC ocorreu durante o programa Roda Viva, da TV Cultura, no qual ele afirmou que no governo Lula ''a corrupção é endêmica. A diferença [entre a minha administração e atual] é de atitude: não posso dizer que não teve, mas garanto que eu não compactuei com ela. Nunca passei a mão na cabeça de corrupto [ao contrário do presidente Lula]'', registrou, excitada, a Folha. Este jornal, hoje um dos principais palanques da oposição neoliberal-conservadora, deveria, no mínimo, citar as denúncias de corrupção durante o governo de FHC. E olha que não foram poucas. Vale à pena refrescar a memória de FHC e de Otavinho:

- Sivam. Logo no início do primeiro mandato de FHC, denúncias de corrupção e de tráfico de influencias no contrato de US$ 1,4 bilhão na criação do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam) derrubaram o um ministro e dois assessores do presidente. Mas a CPI instalada no Congresso, após intensa pressão, foi esvaziada pelos aliados do governo e resultou apenas num relatório com informações requentadas ao Ministério Público.

- Pasta Rosa. Pouco depois, em agosto de 1995, eclodiu a crise dos bancos Econômico (BA), Mercantil (PE) e Comercial (SP). Através do Programa de Estímulo à Reestruturação do Sistema Financeiro (Proer), FHC beneficiou com R$ 9,6 bilhões o Econômico numa jogada política para favorecer o seu aliado ACM. A CPI instalada não durou cinco meses, justificou o ''socorro'' aos bancos quebrados e nem sequer averiguou o conteúdo da pasta rosa, que trazia o nome de 25 deputados subornados pelo Banco Econômico.

- Precatórios. Em novembro de 1996 veio à tona a falcatrua do pagamento de títulos no Departamento de Estradas de Rodagem (Dner). Os beneficiados pela fraude pagavam 25% do valor destes precatórios para a quadrilha que comandava o esquema, resultando num prejuízo à União de quase R$ 3 bilhões. A sujeira resultou na extinção do órgão, mas os aliados de FHC impediram a criação da CPI para investigar o caso.

- Compra de votos. Em 1997, gravações telefônicas colocaram sob forte suspeita a aprovação da emenda constitucional que permitiria a reeleição de FHC. Os deputados Ronivon Santiago e João Maia, do PFL do Acre, teriam recebido R$ 200 mil para votar no projeto. Eles renunciaram ao mandato e foram expulsos do partido, mas o pedido da CPI foi bombardeado pelos governistas.

- Desvalorização do real. Num nítido estelionato eleitoral, FHC promoveu a desvalorização do real no início de 1999. Para piorar, socorreu com R$ 1,6 bilhão os bancos Marka e FonteCidam - ambos com vínculos com tucanos de alta plumagem. A proposta de criação da CPI tramitou durante dois anos na Câmara Federal e foi arquivada por pressão da bancada governista.

- Privataria. Durante a privatização da Telebrás, grampos no BNDES flagraram conversas entre Luis Carlos Mendonça de Barros, ministro das Comunicações, e André Lara Resende, dirigente do banco. Eles articulavam o apoio da Previ, o Banco do Brasil, para beneficiar o consórcio do banco Opportunity, que tinha como um dos donos o tucano Pérsio Árida. A negociata teve valor estimado de R$ 24 bilhões. Apesar do escândalo, o governo sabotou a instalação da CPI. O outro envolvido neste escândalo foi Daniel Dantas, o especulador ''muito competente'', segundo outra besteira dita recentemente por FHC.

- Eduardo Jorge. O secretário-geral de FHC foi alvo de inúmeras denúncias no reinado tucano: esquema de liberação de verbas no valor de R$ 169 milhões para o TRT-SP; montagem do caixa-dois para a reeleição; lobby para favorecer empresas de informática com contratos no valor de R$ 21,1 milhões só para a Montreal; e uso de recursos dos fundos de pensão nas privatizações.

- CPI da Corrupção. Em 2001, chafurdando na lama, o governo ainda bloqueou a abertura de uma CPI para apurar todas as denúncias contra a sua triste gestão. Foram arrolados 28 casos de corrupção, que depois se concentraram nas falcatruas da Sudam, na privatização da Telebrás e no envolvimento do ex-ministro Eduardo Jorge.
A pisada na bola de Lula
Toda essa imundice no ninho tucano ficou impune, com a cumplicidade da maior parte da mídia. FHC também contou com a ajuda do procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, que por isso foi batizado de ''engavetador-geral''. Dos 626 inquéritos instalados até maio de 2001, 242 foram engavetados e outros 217 foram arquivados. Eles envolviam 194 deputados, 33 senadores, 11 ministros e ex-ministros e, em quatro, o próprio FHC. Nada foi apurado e FHC afirma hoje, na maior caradura, que ''nunca passei a mão na cabeça de corrupto''. Haja paciência!
Logo no início do seu primeiro mandato, Lula se jactou de ter rejeitado terminantemente a idéia da abertura das investigações sobre a ''herança maldita'' da corrupção tucana. Diante da língua ferida de FHC, talvez ele já tenha se arrependido de tanta ''bondade''!

quinta-feira, 19 de março de 2009

SATIAGRAHA

Bob Fernandes, Os intestinos do Brasil, copyright Terra Magazine, 9/07/08

A Polícia Federal trabalhou duramente para que Daniel Dantas fosse preso. A Polícia Federal não queria, de forma alguma, que Daniel Dantas fosse preso. A Polícia Federal fez tudo para que Daniel Dantas fosse preso. A Polícia Federal fez tudo para que Daniel Dantas não fosse preso.
A Polícia Federal trabalhou contra a Polícia Federal.Esse é mais um capítulo do mergulho nos intestinos do Brasil. Estão presos o banqueiro do Opportunity, o megaespeculador Naji Nahas, o ex-prefeito Celso Pitta e outros 17 dos 21 que tiveram a prisão decretada. É quarta-feira, 9 de julho.
Nas telas, ondas, bits e páginas, a futebolização de sempre: aplausos entusiasmados, críticas ferozes à ação da polícia. O que ainda não chegou à tona é a verdadeira história dessa gigantesca ação policial, da encarniçada batalha que se travou nos setores de Inteligência e da Polícia.
O que se narra aqui são cenas, é o contorno dessa batalha, mas antes é preciso lembrar que este é apenas mais um capítulo.
Crucial, decisivo para que se entenda o todo, o que se movia, se move - e se moverá -, mas apenas mais um capítulo no enredo da maior disputa da história do capitalismo brasileiro, disputa essa que carrega em si o esteio, a sustentação do poder. Do Grande Poder. O delegado Protógenes Queiroz comandou as investigações no último ano. Antes dele, ao tentar seguir a pista da organização comandada por Dantas, outros delegados fraquejaram. Ou desistiram, ou...
Protógenes foi conduzido ao comando da investigação sigilosa pelo então diretor geral da Polícia Federal, Paulo Lacerda, hoje chefe da Agência Brasileira de Inteligência, Abin. Paulo Lacerda queria e autorizou a operação até deixar a direção da PF.
Um dia, convidado pelo presidente Lula, Lacerda foi para a Abin. Em seu lugar assumiu Luiz Fernando Corrêa, que chefiava a Força Nacional de Segurança Pública. Luiz assumiu com fama de amigo de José Dirceu.
Se era ou se não era, se suas relações vinham apenas da proximidade no trabalho de segurança da PF ao candidato Lula em eleição anterior, é uma outra questão, mas o fato é que Luiz Fernando chegou ao cargo com essa fama: amigo de José Dirceu.
Logo ao assumir, o diretor da PF quis mais informações sobre que investigação seria aquela relativa aos negócios e métodos de Daniel Dantas. Normal. Parte das suas atribuições de comando.
O delegado Protógenes, por seu lado, ofereceu explicações genéricas, mas guardou o que era secreto, segredo de justiça.
Normal. Manhas de um tira brilhante, esperto, do policial que prendeu Paulo Maluf, o contrabandista Law Kin Chong, que pôs na marca do pênalti o Corinthians da MSI, Kia Joorabichian e Dualib, que investiga para a FIFA as lavanderias do futebol mundo afora. Normal, em meio aos rumores sobre vazamentos na investigação e, pior, propinas. Subornos em favor de Dantas.
Na diretoria de Inteligência, um aliado do diretor geral na busca de informações amplas sobre o núcleo das investigações: o delegado Daniel Lorenz.
Protógenes Queiróz é duro na queda. Primeiros embates, e a operação Satiagraha perde estrutura. O comando esvazia parte da logística; retira agentes e peritos, encolhe a sala, asfixia as investigações....o corriqueiro nos jogos de guerra.
O jogo é maior, muito maior. As pedras se movem. Ao diretor da Polícia Federal chega o recado. Suave, mas direto: as investigações devem prosseguir.
Fim do ano. Mídia afora, o festival de plantações, versões. A batalha, que é política, comercial, policial, segue seu leito também nas telas, ondas, bits e páginas. Véspera do Natal. Estranhíssima entrevista do diretor geral.
Luiz Fernando Corrêa escolhe o encarte semanal "Brasília" do jornal mineiro Hoje em Dia para mandar um recado em forma de entrevista. Manchete:
-Cada geração tem um papel a cumprir. Cumpriu, sai fora!
Até o vidro fumê do edifício sede da PF em Brasília captou a mensagem e os destinatários: Paulo Lacerda e antigos delegados que comandaram a Polícia durante 4 anos e 8 meses do governo Lula.
Para não haver dúvidas, a capa do tablóide berrou:
-PF dividida.
Véspera do Natal, peru, nozes, vinhos, poucos civis devem ter lido. Mas a polícia inteira leu. Comentou, discutiu. E mesmo o mais desatento agente sacou que a barca do delegado Protógenes Queiroz, fosse qual fosse, não era uma boa aos olhos da direção.
Parênteses. Daniel Dantas e os seus comemoravam, vibravam a cada boa notícia. Sim, o que não faltou nesse enredo foi notícia. Capas e capas.
O carnaval se foi. E um fato: a repórter quer falar com o delegado Queiroz. Quer informações sobre uma investigação que envolveria Daniel Dantas e o Opportunity. Apreensão, no início de abril - e isso são fatos. Objetivos. Conhecidos desde então: a repórter vai publicar o que tem se não for recebida.
A situação se agrava. Por ordem do comando, o delegado Protógenes Queiroz perde quase toda a logística. Fato registrado, inclusive, em imagens: a sala sendo esvaziada, a tralha tecnológica removida.
Queiroz começa a fingir que a operação faz água. Cede, aceita conversar com a repórter; Andréa Michael, da Folha de S.Paulo. Mas faz uma exigência aos superiores: quer a presença do diretor geral, Luiz Fernando Corrêa, e de Lorenz, o diretor de Inteligência. Corrêa não vai, manda alguém da comunicação social. Lorenz, presente. Na conversa, o delegado Queiroz contorna, tergiversa, despista, e guarda tudo o que disse e o que não disse.
Sábado, 26 de Abril. Anunciado o acordo das teles, vem aí a BrOi. No caderno "Dinheiro", da Folha, em quase meia página a repórter Andréa Michael relata os contornos de uma operação a caminho, destinada a prender Daniel Dantas.
Domingo, 27 de Abril. A operação está morta. Protógenes Queiroz faz dois movimentos. Primeiro, na véspera, a ligação para Lorenz, que está no Chile. Cobra a conta da conversa com a repórter, quando apenas despistou. A conversa, de parte a parte, não é boa. Segundo movimento: Queiroz, para efeito externo, dá a operação como morta. Para efeito interno, os fatos incendeiam agentes, peritos e delegados envolvidos numa operação cada vez mais secreta.
Segue a semana. Queiroz é comunicado. Não há, não haverá mais logística alguma. Caso encerrado. Caso que o diretor geral e o diretor de Inteligência seguem a desconhecer em seu teor. O delegado está solto no espaço.
Uma outra rede conecta-se, subterrânea, solidária. O outro lado da polícia trabalha, secretamente, pela Satiagraha, a "firmeza na verdade" de Gandhi.
Notas em colunas, sites. Chutes, bravatas, cascatas, desinformação. A operação é adiada. Uma, duas, três vezes.
O delegado Protógenes Queiroz é monitorado, vigiado. Pela Polícia Federal. E sua equipe contra-ataca: vigia, monitora, flagra e registra, os movimentos dos monitoradores da própria PF.
Daniel Dantas e os seus estão tensos. Em dúvida: acabou, ou não acabou? Na dúvida, encaminham ao Supremo Tribunal Federal um pedido de habeas corpus preventivo, para Dantas e a irmã, Verônica.
Daniel Dantas morde a isca. Humberto Braz, ex-presidente da Brasil Telecom e o amigo Hugo Chicaroni são os intermediários. A oferta é feita ao delegado Vitor Hugo Rodrigues Alves.
Na churrascaria El Tranvia, bairro de Santa Cecília, São Paulo, o ensaio para o acordo final: US$ 1 milhão.
Como sinal, duas parcelas, uma de 50 e outra de 80, e pagamento em outras duas de US$ 500 mil. Encontros e acordos fechados em 18 e 26 de junho. Para livrar a cara dos Dantas. Há algo no ar. Frases soltas.
Gilmar Mendes é o presidente do STF. No meio da semana, pós-São João, desponta nas telas, um tempão nos telejornais, nas manchetes do dia seguinte. Refere-se a informações vazadas por policiais, uma "coisa de gângsters" e ao "terrorismo lamentável".
A fala ecoa. Cada um entende como quer. Críticas gerais às interceptações telefônicas (mesmo às autorizadas judicialmente).
Julho chegou. Fim de semana. Notas, boatos... Daniel Dantas está em Nova Iorque... Daniel Dantas aguarda o habeas corpus para voltar ao Brasil...
Sete de Julho. O delegado geral, Luiz Fernando Corrêa, que até a véspera nada sabia sobre a verdadeira extensão de Satiagraha, quer agora saber de tudo. De tudo, não saberá. Extrema tensão. Como há um mês, no Rio de Janeiro.
Agentes da equipe de Queiroz seguiam gente dos Dantas, pelas ruas do Rio. A polícia foi chamada, quase um confronto até o esclarecimento "somos da PF" e o despiste numa operação banal qualquer. Mas a queixa subiu.
Chegou ao diretor geral da PF, a Heráclito Fortes (DEM-PI) no senado e ao advogado geral da União, José Antonio Toffoli, adentrou o Supremo Tribunal.
Seis da manhã, 8 de julho. Avenida Viera Souto, Ipanema, Rio de Janeiro. Daniel Dantas está preso.
Furacão na mídia, por todo o dia. À noite nos telejornais e no dia seguinte, este 9 de julho, a repercussão.
Gilmar Mendes, o presidente do STF, ataca a "espetacularização das prisões, incompatível com o Estado de Direito", critica duramente o pedido de prisão, negado, contra a repórter da Folha de S. Paulo:
-...isso faz inveja ao regime soviético...
Frases soltas no ar.
Miriam Leitão, a comentarista econômica, também está no ar. Na rádio CBN, Miriam conversa com Carlos Alberto Sardenberg.
Meio dia e quarenta. Miriam diz não ter entendido direito porque Daniel Dantas foi preso. Afinal, constata, as acusações são inconsistentes, "coisas do passado", e é preciso que a Polícia Federal explique melhor por que fez essa operação "com tamanho estardalhaço..." Miriam se vai. Sardenberg chama os comerciais, não percebe que o microfone está aberto, e deixa escapar:
-...ela tava estranha, não?
Frases soltas no ar.
Daniel Dantas está preso. Esse, o policial, é mais um capítulo da operação que chegou aos intestinos do Brasil.